E eu que não gosto de escrever, e que nunca escrevi cartas de amor, e não é por achá-las ridículas, não me venhas com o teu Fernando para cima da minha pessoa, e olha bem o estado a que eu cheguei, a tentar fazer trocadilhos com coisas que pouca piada têm, e talvez acabe já esta frase, antes que a frase acabe comigo, e vê bem o estado em que eu fico quando escrevo sobre ti, ou sobre mim, ou para ti, e já pareço aqueles escritores de que tanto gostas, analfabetos de primeira apanha, que nunca escrevem «de primeira apanha» por serem gente tão culta, e tão brilhante, e tão diferente, e gente que muito escreve, e escreve sempre tanto, que vírgulas e pontos finais é coisa que não lhes interessa. Vai à merda. Desculpa, estou a ser brusco de mais, ou talvez de menos, e eu só quero acertar — como se costuma dizer — em cheio, bem em cheio na boa merda que tu és. Desculpa outra vez, estou a ser demasiado directo, ou sincero, e tu sempre gostaste de mim mais calmo, ou meigo, ou brando, ou qualquer coisa que assim fosse, nesse meio termo entre o homem e o veludo, e quase me metias num robe e num par de chinelos, a fazer chás de camomila e a prometer-te as Venezas todas deste mundo. Então eu digo, agora digo, tudo aquilo que queria escrever desde o início, não da carta, nada disso, a carta comecei-a agora mesmo, mas desde sempre, que é desde que te foste embora: ainda não sinto a tua falta. É estranho porque continuo a acordar contigo, e não é bem acordar porque pouco durmo, ou quase nada, é mais sentir que ainda aqui estás, que ainda aqui estás exactamente por já não estares, não sei se compreendes, se calhar preferias uma prosa mais arranjadinha, mais poética, talvez mais poética, tu sempre amaste os maricas dos poetas, aqueles que amam e tremem com a caneta e muito pouco com a alma que se gasta e se arruina. Mas digo apenas o que digo. E digo: ainda não sinto a tua falta. Custa entrar nos sítios onde te vi e custa ainda mais ver-te nos sítios onde agora entro, mas sem ti, e tu sempre com outros, que não eu. Não são ciúmes, ou talvez sejam, eu sei lá, talvez tu possas dizer, tu que sabes tudo, e de tudo, e de todos, mas não gosto de te ver onde me vejo também a mim. Só por isso te envio uma lista onde escrevi os hábitos das minhas semanas, e agradecia — até peço por favor — que não estivesses lá quando eu estivesse. Respeitei as sextas e os sábados, porque sei onde tomas café, onde bebes muito, e talvez jantes, não me importa com quem, ou talvez me importe, mas não vale de muito explicar esse muito que me importa, e para mim só deixei os dias da semana, de segunda a quinta, e os horários, e os sítios onde gosto de ir, e espero que aos mesmos não vás, e se quiseres muito ir, vai só depois de eu ter saído, ou antes de eu ter entrado, ou então avisa, eu sei lá. E só de pensar o quanto ainda gostava de estar contigo — Deus me perdoe: diz lá o que é que eu merecia por ser tão estúpido? Precisamente, e o que estás a pensar ainda é pouco: multiplica por dez e acrescenta-lhe outro tanto, e ainda é pouco. Merecia pior, ou melhor, depende do que pensares, e eu, como penso bem as coisas más que tu pensas sobre mim, digo pior, muito pior, e talvez acerte, e acerto mesmo. As saudades aguento-as bem, são coisa pequena e muito minha, tu sabes como é, ou como são, sempre me soube arruinar sem companhia, e sou um homem como os homens devem ser, e não choro por dá cá aquela palha, apesar de não saber por que razão dizemos «dá cá aquela palha». Não preciso que sintas pena, eu é que devia sentir pena de dizer que não sinto a tua falta, mas a falta que tu me fazes. Não é a mesma coisa, tu julgas que é, mas não é: e se fosse, seria alguma tragédia? Não há nada que relembre em ti que ame, que aprecie — quero dizer, mais do que apreciava outrora. Pois bem, a cor dos olhos, querias que eu dissesse alguma coisa sobre eles, não querias? Mas são banais, vulgares, e tão bonitos que eles eram — mas só quando eram meus, minha linda. E os lugares onde estivémos, que eram nossos por neles estarmos e não noutros, são agora vazios, porque sempre cheios de gente, gente que não interessa, por nunca ter interessado tão pouco como agora. E as frases que tu dizias, e eu ficava a pensar que talvez tivesses razão, uma razão muito tua, mas uma razão como outra razão qualquer, e pensava na beleza das palavras que dizias, por não serem minhas, e por sempre ter amado tudo aquilo que é meu e não me pertence. Amo-te como não posso, e a distância é pior do que os amantes que se amam à distância. Talvez sintas alguma coisa, quem sabe uma pontada nas costas, minha jóia, meu amor, minha linda, minha rica, e ainda te ris das coisas que eu escrevo? Devias ter vergonha, não muita, apenas a suficiente para nunca te rires dos teus e dos meus risos, especialmente dos meus, aqueles que um dia me viste rir só para ti. É noite e já pouco digo que valha a pena escutar, ou ler, ou mesmo rasgar. Ainda não sinto a tua falta, juro-te pela minha rica saudinha — e que um camião TIR me leve pela estrada e me ensine a voar pela noite fora. Mas sei que irei sentir. A falta que ainda não sinto é pior do que a falta que chegará por um destes dias. É coisa estranha e melancólica, que se apossessa do corpo numa sinfonia em crescendo — e tu desculpa lá esta última frase, que a copiei sem vergonha de um livro muito mau que tu me deste. Hei-de sentir a tua falta. E antes que ela bata à porta como batem todas as faltas, num choro tão feio e tão chorado a despropósito, espero que tu batas primeiro. E não direi para ser tudo como dantes, mas melhor, ou pior — sim, pior, pior para mim, porque eu até nem me importo de usar robe, e chinelos. E se isso te fizer feliz, muito feliz, mesmo feliz, nadaremos também como peixes numa chávena de chá, assim que a água dos canais nos inunde o quarto a camomila.
João Pereira Coutinho
in revista365.
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